Herança Digital: O Impacto da Era Digital no Direito Sucessório e a Necessidade de Planejamento
- Maria Eduarda Amaral e Eloah Scantelbury
- 28 de mar.
- 6 min de leitura

Diante do avanço da tecnologia e da crescente presença dos indivíduos em ambientes digitais, os direitos sucessórios relativos à herança digital tornaram-se um tema de grande relevância jurídica e prática para diversas pessoas.
Com a intensificação do uso da internet, a maioria das pessoas têm acumulado um patrimônio digital, com valor econômico ou afetivo altamente relevantes.
Buscamos analisar os impactos jurídicos da herança digital, explorando o conceito de bens digitais, o conflito entre a privacidade do falecido e os direitos dos herdeiros, bem como as possíveis soluções para prevenir conflitos relacionados ao tema.
O que são bens digitais?
Bens digitais são definidos como ativos incorpóreos armazenados na internet, consistindo em informações pessoais com valor utilitário, econômico ou afetivo para o titular[1]. O termo herança digital, por sua vez, se refere ao conjunto de bens digitais deixados por um indivíduo.
A herança digital abrange uma variedade de conteúdos, como contas de mídia social, e-mails, arquivos armazenados em nuvem, documentos, fotos, vídeos, criptoativos, dentre outros. Um arquivo de vídeo de um casamento salvo em nuvem, por exemplo, pode não ter valor econômico, mas seu valor afetivo para os familiares é inestimável.
Outro exemplo extremamente relevante é a possibilidade de transmissão de contas de redes sociais de influenciadores digitais ou famosos após o falecimento destes. Atualmente, as redes sociais têm ganhado destaque como uma das principais ferramentas de publicidade, de modo que muitos perfis de famosos e influenciadores são considerados verdadeiros ativos patrimoniais.
Dentre os perfis mais ricos do Instagram em 2024 pode-se citar os perfis do jogador de futebol Cristiano Ronaldo, cujo valor por postagem publicitária foi avaliado em 3.432.000 dólares e o perfil do jogador Lionel Messi, cujo valor por postagem na rede social foi avaliado em 2.731.000 dólares[2].
A transmissão de perfis em redes sociais após o falecimento de seu titular é um tema complexo e ainda sem consenso na doutrina jurídica. Enquanto uma parte da doutrina nacional defende que apenas bens digitais com valor econômico, como perfis de influenciadores no Instagram, podem ser transmitidos como parte da herança, outros argumentam que redes sociais, por serem inerentes à personalidade, não possuem valor econômico e, portanto, não são passíveis de transmissão.
Classificação dos bens digitais
A doutrina jurídica classifica os bens digitais em três categorias:
Bens digitais patrimoniais: São aqueles com valor econômico, como criptomoedas, ativos tokenizados, milhas aéreas, bancos de dados e softwares.
Bens digitais existenciais (personalíssimos): São bens com valor existencial, como e-mails e perfis em redes sociais, blogs e sites pessoais, que estão exclusivamente ligados aos direitos da personalidade do falecido.
Bens digitais híbridos: São bens que possuem tanto valor econômico quanto existencial, como contas monetizadas por influenciadores digitais e artistas no YouTube, Instagram e em outras plataformas digitais.
A legislação brasileira e a herança digital
No Brasil, ainda não existe uma legislação específica que regule a herança digital, o que tem gerado intensas discussões sobre quais bens digitais podem ser transmitidos aos herdeiros e de que forma a partilha desses bens pode ser realizada.
Diante da ausência de uma norma clara, os tribunais têm recorrido a legislações como a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), de forma alinhada à legislação sucessória, para fundamentar suas decisões.
De modo geral, a jurisprudência brasileira tem buscado equilibrar os direitos dos herdeiros com a proteção da privacidade e a vontade do falecido. Bens digitais patrimoniais, que possuem valor econômico, podem ser transmitidos aos herdeiros, enquanto bens digitais existenciais, relacionados aos direitos de personalidade, têm sido considerados intransmissíveis.
Sobre o tema, o Conselho da Justiça Federal, após a IX Jornada de Direito Civil realizada em 2022, publicou o enunciado 687 o qual defende que "O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo."
Diante disto, a comunidade jurídica sedimentou uma posição de que o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, sendo passível de disposição testamentária ou por codicilo.
A consolidação do entendimento reflete a necessidade urgente de regulamentação clara sobre a herança digital e a relevância de realizar um planejamento sucessório para assegurar a destinação adequada dos bens digitais e evitar conflitos futuros.
O conflito entre privacidade e herança
A ausência de uma legislação específica sobre herança digital no Brasil tem gerado conflitos entre o direito à privacidade do falecido e o direito dos herdeiros à herança.
A privacidade do falecido é um valor protegido pela Constituição, e o acesso irrestrito aos seus bens digitais pode expor informações que ele não desejava divulgar. Por outro lado, restringir o acesso dos herdeiros pode privá-los de bens com valor econômico ou afetivo, criando um impasse jurídico.
Um exemplo relevante sobre a destinação de contas de redes sociais de falecidos é a política do Facebook, que permite ao titular designar um contato herdeiro para administrar seu perfil após o falecimento, transformando-o em um memorial[3]. O contato herdeiro pode, então, gerenciar alguns aspectos do perfil, como a foto e posts, mas não tem permissão para ler mensagens privadas ou fazer login na conta[4].
Soluções legais e a importância do planejamento sucessório
Diante disso, algumas soluções legais podem ser adotadas para mitigar os conflitos e assegurar a segurança jurídica na sucessão digital. Entre elas, destacam-se:
Análise dos Termos de Uso de Plataformas: Analisar cuidadosamente os termos de uso das plataformas digitais, que frequentemente preveem disposições sobre o destino dos dados do usuário após sua morte. É essencial verificar a legalidade desses termos e contestar eventuais abusos.
Planejamento Sucessório: Elaborar um testamento que especifique o destino dos bens digitais, designando herdeiros e estabelecendo diretrizes claras para o acesso e uso desses ativos.
Em um cenário sem regras legais expressas, o planejamento sucessório torna-se uma ferramenta fundamental. A elaboração de um testamento que aborde especificamente os bens digitais pode garantir que os herdeiros tenham acesso aos bens de forma justa, respeitando a vontade do falecido e protegendo a privacidade dos envolvidos.
Além disso, essa iniciativa ajuda a minimizar os riscos de litígios e a garantir a continuidade dos ativos digitais, sejam eles de valor econômico ou sentimental.
A herança digital é uma realidade cada vez mais complexa e relevante no cenário jurídico atual, contudo, falta de uma legislação específica no Brasil deixa o tema sujeito a interpretações diversas e decisões judiciais conflitantes.
Por isso, a adoção de medidas preventivas, como o planejamento sucessório adequado, torna-se essencial para assegurar que o patrimônio digital seja transmitido de acordo com a vontade do falecido e dentro dos parâmetros legais.
Referências Bibliográficas
ACA de Paiva, Ana Carolina Alves. Herança digital e a morte do usuário: a violação ao direito à privacidade dos bens. 2023. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/3978934/Ana+Carolina+Alves+de+Paiva_RMP-88.pdf. Acesso em: 28 fev. 2025.
COSTA, Guilherme; TEIXEIRA, Dyne. Herança digital: análise da (in)transmissibilidade dos perfis das contas do Instagram no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Tópicos, v. 2, n. 14, 2024. ISSN 2965-6672.
HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Propostas para a regulação da herança digital no direito brasileiro. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (Coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
HOPPER. 2024 Instagram Rich List. 2024. Disponível em: https://www.hopperhq.com/instagram-rich-list/
HOSKEN, Camila. Herança digital no inventário. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/396378/heranca-digital-no-inventario. Acesso em: 28 fev. 2025.
LEAL, Lívia. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018. p. 190.
META. O que acontecerá com sua conta do Facebook se você falecer. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/help/103897939701143. Acesso em: 28 fev. 2025.
META. Sobre os contatos herdeiros no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/help/1568013990080948?helpref=faq_content. Acesso em: 28 fev. 2025.
QUINDERÉ BUZIN, Fernanda. O tratamento jurídico da herança digital no Brasil: entre a tradição e a inovação. 2023. Disponível em: https://repositorio.idp.edu.br/bitstream/123456789/4876/1/Monografia_Fernanda%20Quinder%C3%A9%20Buzin_Gradua%C3%A7%C3%A3o%20em%20Direito%202023.pdf. Acesso em: 28 fev. 2025.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Agravo de Instrumento-Cv nº 1.0000.21.190675-5/001. Relator: Des.(a) Albergaria Costa, 3ª CÂMARA CÍVEL, Julgamento em 27 jan. 2022, Publicação da súmula em 28 jan. 2022.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Agravo de Instrumento-Cv nº 1.0000.24.174340-0/001. Relator: Des.(a) Delvan Barcelos Júnior, 8ª Câmara Cível Especializada, Julgamento em 22 mai. 2024, Publicação em 28 jun. 2024.
[1] LEAL, Lívia. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018. p. 190.
[3] META. O que acontecerá com sua conta do Facebook se você falecer. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/help/103897939701143. Acesso em: 28 fev. 2025.
[4] META. Sobre os contatos herdeiros no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/help/1568013990080948?helpref=faq_content. Acesso em: 28 fev. 2025.