Em regra, o proprietário de um bem concentra os atributos de sua propriedade, dentre os quais se elencam, a título exemplificativo, o uso, o gozo e a disposição. O Direito Civil, entretanto, através de diversos mecanismos, desmembra ou limita os referidos atributos, permitindo sua materialização em diferentes sujeitos ou, ainda, estabelecendo critérios para seu exercício.
Diversos são os institutos que trabalham com o desmembramento desses atributos, como, por exemplo, a instituição de direitos reais, como o usufruto e a superfície, ou a celebração de negócios jurídicos contratuais, como o contrato de locação.
Em relação à disposição, o proprietário comumente é o Senhor da decisão a respeito do momento, do valor e do destinatário da venda, podendo, sem necessidade de motivação alguma, escolher para quem deseja transferir sua propriedade.
Nessa seara, situação que sempre gerou controvérsias no seio da doutrina e da jurisprudência diz respeito à formatação do atributo “disposição” em situações de condomínio geral sobre o mesmo bem. Muito se discute se o condômino tem direito de preferência em relação a terceiros ou se o proprietário reserva a si o direito de escolher a quem transferir seu direito sobre a propriedade.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgado proferido em junho de 2015 — REsp n.º 1.207.129/MG —, delineou sua interpretação acerca dos arts. 504 e 1.314 do Código Civil de 2002, a nosso ver de maneira acertada, firmando o entendimento já adotado à luz do art. 1.139 do Código Civil de 1916 — REsp n.º 489.860/SP[1] —, no sentido de que o condômino que desejar alhear sua fração ideal de bem em estado de indivisão (condomínio geral), ainda que seja o referido bem divisível, deverá garantir preferência na aquisição ao comunheiro.
Quanto ao condomínio geral de bem indivisível, doutrina e jurisprudência há muito já concordavam quanto à necessidade de se garantir o direito de preferência, pela natureza própria do bem. O caso decidido, entretanto, diz respeito à alienação de fração ideal de bem que, apesar de indiviso, comporta divisão — situação essa que ainda encontrava bastante resistência na doutrina e na jurisprudência no que diz respeito à concessão do direito de preferência.
Primeira e segunda instâncias do caso concreto entenderam que não haveria a preempção e, consequentemente, não haveria o dever de notificação prévia quanto ao aludido direito de preferência:
(...) "a norma em questão visa à pacificação social, a fim de evitar que um terceiro passe a ser proprietário comum de um bem indivisível, fisicamente, ou que a lei vede a sua divisão, esse é o inconveniente a ser evitado, as coisas impassíveis de divisão quando com muitos possuidores, tendem a gerar relações mais complexas, que podem piorar quando um condômino é um estranho" (fl. 121). No entanto, sendo o imóvel passível de divisão, é inaplicável o referido artigo, já que há possibilidade de ser desmembrado o bem, evitando-se que haja conflito com os demais condôminos
Sobre o assunto, vale trazer a seguinte lição: "Se a coisa é divisível, nada impede que o condômino venda a sua parte a estranho, sem dar preferência aos seus consortes, pois estes, se não desejarem compartilhar o bem com aquele, poderão requerer a sua divisão. " (Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. IIl, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 220).
O Superior Tribunal de Justiça, conforme já adiantado, reformou o decisum a quo, consolidando o entendimento de que o direito de preferência se perfaz em situações de condomínio geral ainda que o bem seja divisível.
Essa opção legislativa e jurisprudencial anda no sentido de equalizar o confronto de dois interesses: o interesse individual do proprietário, que deseja vender seu quinhão do modo que lhe aprouver, com o interesse coletivo da comunidade de proprietários, que visam a manter a titularidade da propriedade entre os pares, de modo a evitar conflitos em decorrência da entrada de um estranho no grupo.
De fato, pautando-se a análise da situação na função social da propriedade, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça parece o mais acertado, uma vez que não exclui o direito de disposição inerente à propriedade ao mesmo tempo em que prioriza a extinção do condomínio geral. É dizer, da análise sistemática do Código Civil, observamos que o legislador procurou adotar medidas que viabilizem, sempre que possível, a simplificação ou extinção dos condomínios indivisíveis, de modo a facilitar as transações imobiliárias e promover em seu maior nível a pacificação social.
Com efeito, condomínios gerais são fontes férteis para o surgimento de conflitos de interesses e judicialização de demandas, devendo o legislador e o judiciário pautarem suas atuações em defesa da simplificação desse tipo de relação, preferencialmente evitando-a.
A única alteração substancial do dispositivo no Código de 2002 em relação ao de 1916 foi a alteração do prazo decadencial de seis meses para cento e oitenta dias, alteração relevante tendo em vista que a contagem de prazos em dias e meses se dá de maneira distinta. No mais, parece-nos acertado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de manter a interpretação já anteriormente adotada para a situação, à luz do Código Civil de 1916.
Por fim, esclarecedora se faz a leitura da ementa adotada pelo STJ para o acórdão do caso em apreço e dos dispositivos apontados:
DIREITO CIVIL. CONDOMÍNIO. ART. 504 DO CÓDIGO CIVIL. DIREITO DE PREFERÊNCIA DOS DEMAIS CONDÔMINOS NA VENDA DE COISA INDIVISÍVEL.
IMÓVEL EM ESTADO DE INDIVISÃO, MAS PASSÍVEL DE DIVISÃO. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO EXARADO PELA SEGUNDA SEÇÃO TOMADO À LUZ DO ART.
1.139 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.
1. O condômino que desejar alhear a fração ideal de bem em estado de indivisão, seja ele divisível ou indivisível, deverá dar preferência ao comunheiro da sua aquisição. Interpretação do art. 504 do CC/2002 em consonância com o precedente da Segunda Seção do STJ (REsp n.
489.860/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi), exarado ainda sob a égide do CC/1916. .
2. De fato, a comparação do art. 504 do CC/2002 com o antigo art.
1.139 do CC/1916 permite esclarecer que a única alteração substancial foi a relativa ao prazo decadencial, que - de seis meses - passou a ser de cento e oitenta dias e, como sabido, a contagem em meses e em dias ocorre de forma diversa; sendo que o STJ, como Corte responsável pela uniformização da interpretação da lei federal, um vez definida tese sobre determinada matéria, deve prestigiá-la, mantendo sua coesão.
3. Ademais, ao conceder o direito de preferência aos demais condôminos, pretendeu o legislador conciliar os objetivos particulares do vendedor com o intuito da comunidade de coproprietários. Certamente, a função social recomenda ser mais cômodo manter a propriedade entre os titulares originários, evitando desentendimento com a entrada de um estranho no grupo.
4. Deve-se levar em conta, ainda, o sistema jurídico como um todo, notadamente o parágrafo único do art. 1.314 do CC/2002, que veda ao condômino, sem prévia aquiescência dos outros, dar posse, uso ou gozo da propriedade a estranhos (que são um minus em relação à transferência de propriedade), somado ao art. 504 do mesmo diploma, que proíbe que o condômino em coisa indivisível venda a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto.
5. Não se pode olvidar que, muitas vezes, na prática, mostra-se extremamente difícil a prova da indivisibilidade. Precedente: REsp 9.934/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma.
6. Na hipótese, como o próprio acórdão reconhece que o imóvel sub judice se encontra em estado de indivisão, apesar de ser ele divisível, há de se reconhecer o direito de preferência do condômino que pretenda adquirir o quinhão do comunheiro, uma vez preenchidos os demais requisitos legais.
7. Recurso especial provido.
(REsp 1207129/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2015, DJe 26/06/2015)
CC/2002 — Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.
CC/1916 — Art. 1.139. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranho, se o requerer no prazo de seis meses.
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor, e na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se os quinhões forem iguais haverão a parte vendida os co-proprietários, que a quiserem depositando previamente o preço.
CC/2002 — Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.
Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros.
CC/1916 — Art. 633. Nenhum condômino pode, sem prévio consenso dos outros, dar posse, uso, ou gozo da propriedade a estranhos.
[1] Civil. Recurso especial. Condomínio. Alienação de parte ideal por condômino. Estado de indivisão do bem. Direito de preferência dos demais condôminos. Na hipótese de o bem se encontrar em estado de indivisão, seja ele divisível ou indivisível, o condômino que desejar alienar sua fração ideal do condomínio deve obrigatoriamente notificar os demais condôminos para que possam exercer o direito de preferência na aquisição, nos termos do art. 1.139 do CC16. Precedentes da Quarta Turma. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 489.860/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/10/2004, DJ 13/12/2004, p. 212)