A correta aplicação do princípio da segurança jurídica demanda que o STF reconheça a prescritibilidade das pretensões de ressarcimento por danos decorrentes de atos ímprobos, assim como o fez com os decorrentes de ilícito civil.
Nos últimos meses, houve grande divulgação do julgamento do Recurso Extraordinário 669.069 pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se discutia, a partir da redação do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, a (im)prescritibilidade de pretensões de ressarcimento ao erário por decorrência de ilícito civil.
Em resumo, o recurso analisado pelo Supremo Tribunal Federal foi interposto pela União em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que confirmou sentença que extinguira o processo, ao entendimento de que a ação (indenização por acidente em que se danificou automóvel de propriedade da União) estaria sujeita ao prazo prescricional quinquenal.
Toda a discussão originou-se da confusa redação da parte final do dispositivo constitucional mencionado, segundo o qual “[a] lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
No acórdão formatado, em que se firmou a tese de que “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”, entrou em breve discussão pelos Ministros, também, a (im)prescritibilidade de pretensões que visam a reparações por decorrência da prática de atos ímprobos lesivos ao erário.
Durante o julgamento, o então Relator, Ministro Teori Zavascki, havia optado por firmar a tese segundo a qual “a imprescritibilidade a que se refere o art. 37, § 5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais”.
Todavia, a partir de tese mais cautelosa do Ministro Luís Roberto Barroso, prevaleceu a disposição supracitada — o que não alterou o desfecho da ação, mas deixou para outro momento maiores reflexões acerca dos ilícitos de improbidade administrativa e dos ilícitos penais.
A posição do Ministro Luís Roberto Barroso mostrou-se bastante prudente, sobretudo por se observar a necessidade de amadurecimento de outras teses, como a de total imprescritibilidade, manifestada pelo Ministro Edson Fachin no referido julgamento1, e a de inexistência de prescrição para essa espécie de pretensão, independentemente do ilícito originário, o que aqui se defende.
Pois bem. Ainda será analisado pelo Supremo o RE 852.475, que trata exatamente das pretensões de ressarcimento decorrentes de atos de improbidade administrativa. Sua repercussão geral foi reconhecida em maio deste ano (2016), com expressa nota à restrição adotada no Recurso Extraordinário 669.069:
“Discute-se, no recurso extraordinário, a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos em decorrência de suposto ato de improbidade administrativa. No exame do RE 669.069-RG (de minha relatoria [Teori Zavascki], DJe de 26/8/2013, Tema 666), o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral de matéria delimitada como a imprescritibilidade da ações de ressarcimento por danos causados ao erário, ainda que o prejuízo não decorra de ato de improbidade administrativa. No entanto, no julgamento de mérito, firmou-se tese mais restrita, no sentido de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil (RE 669.069, de minha relatoria, DJe de 28/4/2016, Tema 666). Tal diretriz não alcança, portanto, as ações de ressarcimento decorrentes de ato de improbidade administrativa. Em face disso, incumbe ao Plenário desta Corte pronunciar-se acerca do alcance da regra estabelecida no § 5º do art. 37 da CF/88, desta vez especificamente quanto às ações de ressarcimento ao erário fundadas em atos tipificados como ilícitos de improbidade administrativa.”2 (Grifos acrescidos)
Diante dessa temática, é preciso refletir sobre o real conteúdo da norma do art. 37, § 5º, da Constituição Federal, do qual se percebe, em análise detida, que não há a consagração de imprescritibilidade alguma.
Para chegar a essa conclusão, vale destacar, primeiramente, os princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, que reconhecem, a partir da Constituição Federal, um princípio geral da prescritibilidade das ações no ordenamento jurídico brasileiro.
De fato, o instituto da prescrição existe exatamente para a estabilização das relações jurídicas, independentemente do exercício de pretensões de particulares contra outros cidadãos e contra o Estado ou de ações exercidas pelo próprio Poder Público: são necessários marcos temporais limitados que assegurem aos jurisdicionados uma certeza sobre o que ainda pode ou não ser submetido a Juízo.
Para além dessa insegurança jurídica, surge o cerceamento do direito de defesa dos acusados (art. 5º, LV, da CF) e a ofensa ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), tendo em vista a necessidade de produzir provas em seu favor em data muito posterior à prática de um ato supostamente ímprobo. Dessa forma, contraria-se toda a sistemática jurídica brasileira relativa ao exercício de pretensões condenatórias perante o Poder Judiciário, notadamente porque os órgãos persecutórios estariam em posição de absoluta vantagem quanto à carga probatória.
Nesse contexto, não se pode esquecer que a Constituição, nos momentos em que ressalvou o instituto da prescrição, o fez explícita e especificamente, como nos casos dos incisos XLII e XLIV do artigo 5º, que tratam, respectivamente, da apenação por crime de racismo e por ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático3.
A propósito, da leitura desses dispositivos constitucionais que tratam expressamente da imprescritibilidade, não se encontra a tutela de bens patrimoniais. A imprescritibilidade reserva-se, como visto, à proteção da própria Constituição, da Democracia e de direitos fundamentais, revelando-se somente para esses fins a imposição de comando tão severo.
Já no § 5º do art. 37, há uma ambiguidade, de forma que sua expressão “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento” deve ser lida à luz de todo o texto constitucional. Ora, se mais de uma leitura é permitida — como a de que pretensões de ressarcimento ao erário seriam regidas por prazo prescricional já definido na legislação vigente no momento da promulgação da Constituição —, é fácil perceber que, acaso o constituinte objetivasse simplesmente afastar a prescrição para essa espécie de ações, expressamente o faria, no mesmo dispositivo, com simples técnica de redação.
Além disso, em nosso ordenamento infraconstitucional não é difícil encontrar comandos prescricionais aplicáveis a pretensões da própria Fazenda Pública, como a Lei 9.873/99 e oDecreto 20.910/32, que tratam da prescrição quinquenal, exatamente porque o legislador busca atender, sob a ótica da Constituição, as ideias de pacificação e segurança jurídica.
Assim sendo, a leitura que se deve fazer do § 5º do art. 37 da Constituição Federal é a de que se pretendeu ressalvar o ressarcimento ao erário para que este não se confunda com as pretensões de sanções por improbidade, cuja previsões específicas constam da própria Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92); em nenhum momento se pretendeu consolidar uma hipotética imprescritibilidade de ações de ressarcimento, pois isso contrariaria a estabilização das relações sociais, que é tão cara à Constituição Federal.
1 Vencido no julgamento do RE 669.069, o Ministro Edson Fachin havia proposto a tese de que “a imprescritibilidade da pretensão ao ressarcimento ao erário prevista no art. 37, §5º da Constituição da República, alcança todo e qualquer ilícito, praticado por agente público, ou não, que cause prejuízo ao erário”.
2 RE 852475 RG, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 19/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-108 DIVULG 25-05-2016 PUBLIC 27-05-2016.
3 XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.